"As obras de Suas mãos são verdade e justiça; Imutáveis os Seus preceitos; Irrevogáveis pelos séculos eternos; Instituídos com justiça e eqüidade." - Salmo 110, 7-8

terça-feira, 4 de março de 2014

Matrimônio e Família nos Santos Padres, nos Concílios Particulares e nas Coleções Canônicas (Parte III)

     Aviso: Voltarei à esse estudo depois da Grande e Santa Quaresma, pois quero postar textos e artigos condizentes com esse período de reflexão e de conversão, tão importante para nós católicos. Desde já, agradeço a compreensão.


4. Textos que exigem algum esclarecimento

     Os textos mais explícitos que se aduzem como prova de que a doutrina dos Padres não foi homogênea em negar toda possibilidade de divórcio, são os seguintes, que corresponde à Santo Epifânio e à outros três Padres de especial autoridade: São Basílio, Santo Agostinho e São Leão Magno (do que trataremos no capítulo seguinte). Além da doutrina do Ambrosiaster, cujo erro é incontestável.

     a) SANTO EPIFÂNIO (> 367). O Bispo de Constância de Salamina, contra as heresias de seu tempo que desprezavam o Matrimônio, defende sua dignidade, e, à partir de Ef 5, 32, fala do "sagrado Matrimônio que é digno de honra".

     Mas é na práxis pastoral onde mostra sua benignidade naqueles casos em que, por falta de formação e de sensibilidade, alguns cristãos - "propter imbecillitatem" - são incapazes de entender todas as exigências do Matrimônio monogâmico e indissolúvel. Epifânio contempla o caso em que um marido, separado de sua mulher, se une à outra. Condena com energia a situação daqueles que convivem com duas mulheres: não cabe desculpá-los de verdadeira bigamia, de modo que são condenados. Mas, no caso em que um marido se separe de sua verdadeira esposa e se une à outra, tal situação em si é reprovável, embora a Igreja o tolere em razão de sua "imbecilidade".

     Aqueles que encontram-se nessa situação são especialmente desculpados, se em outros aspectos de sua vida levam uma existência religiosa. Não deixa de surpreender tal benignidade pastoral. Só as situações sociais da época pode explicar tal exceção.

     b) SÃO BASÍLIO  (> 379). O primeiro testemunho aduzido são as cartas de São Basílio,dirigidas à Anfíloco, Bispo de Icônio, escritas nos anos 314-315. Há nestas cartas, enviadas ao longo de dois anos, detalhes que se prestam à interpretação que não são deste lugar. Mas o decisivo é que mais tarde os canonistas bizantinos converteram em cânones o conteúdo destas cartas, os quais, por sua vez, deram lugar ao cânon 87 do Concílio Quinissexto.

     Em consulta à São Basílio, o Bispo Anfíloco lhe propõe a questão acerca de como se deve atuar com os que, separados de sua esposa, se uniram à outra com quem convivem: o quê fazer na práxis penitencial?

     Em relação com o nosso tema, a resposta de São Basílio contém essas quatro afirmações fundamentais:

     Primeiro, que "pela lógica do pensamento", o adultério tem de ser julgado o mesmo do homem e da mulher, "embora o costume não o entenda assim". Chama a atenção o fato de que na Capadócia segue-se um costume distinto para o caso de adultério do homem e da mulher.

     Segundo, a mulher nunca deve abandonar seu marido:

     "O costume manda às mulheres conservar seus maridos, tanto adúlteros como vivendo na fornicação... a acusação alcançará a que abandonou seu marido qualquer que fosse a causa que tenha deixado o Matrimônio... Portanto, a que abandonou é adúltera, se está com outro homem."

     Terceiro, o mesmo juízo merece o homem que repudia sua mulher, assim como a nova "esposa" com quem coabita; ambos vivem em concubinato:

     "Mas se o homem abandona sua mulher e fica com outra, também ele é adúltero, porque a faz adulterar; e a que habita com ele é adúltera."

     Quarto, no entanto, no caso de que o abandonado seja o marido, este merece certa consideração, o mesmo que a mulher com quem convive de modo adulterino:

     "Mas o que foi abandonado é digno de desculpa (synnostós), e a que habita com ele não é condenada."

     Esta doutrina se recolhe, de modo mais direto, em dois cânones: o 9 e o 26. O cânon 9 diz assim:

     "Não sei se se pode denominar adúltera a mulher que vive com o marido abandonado. A que abandona é adúltera, se convive com outro homem. O que é abandonado por sua mulher é desculpado, e a que vive com ele não é condenada."

     Esse ensinamento se repete no cânon 35, que acrescenta uma nota de interesse: este tal participa da comunhão eclesial:

     "Se a esposa o deixou sem razão, o esposo é digno de desculpa, e ela de castigo. A desculpa (synnostós) se concederá ao marido para que possa comungar com a Igreja."

     A doutrina de São Basílio parece clara. Depois de condenar as segundas núpcias aos cônjuges separados, desculpa ao marido injustamente abandonado por sua mulher. Se logo junta-se com outra, ambos devem ser desculpados, e (ao menos) ele não está fora da comunhão eclesial.

     É evidente que tal caso equivale ao reconhecimento de fato de um certo divórcio. Não obstante, esta afirmação repetida por alguns deve ser matizada:

     Primeiro, porque em nenhum caso se legitima um novo Matrimônio, e menos ainda se afirma que o esposo abandonado pode voltar a casar. Simplesmente se reconhece um fato e se "desculpa". Tampouco consta que o novo casal está unido por um novo vínculo matrimonial. Mais ainda, suposto que estivessem casados, não se afirma que o segundo matrimônio seja reconhecido pela Igreja como tal. De fato, Basílio não denomina a mulher como "esposa", mas "a que habita com ele".

     Segundo, porque a hipótese de que São Basílio fala de uma coabitação em concubinato se confirma com o prescrito no cânon 26, onde também insiste em que se separem e, em caso de que não seja possível, se consinta para evitar males maiores:

     "A fornicação não é o Matrimônio, nem sequer o começo de um Matrimônio. Assim que, se é possível separar aqueles que se uniram na fornicação, será o melhor. Mas, se de todas as formas eles preferem a coabitação, que paguem primeiro a pena da fornicação, e depois pode deixá-los em paz por temor à que se produza algo pior."

     Terceiro, porque no âmbito teórico, São Basílio mantêm a doutrina clara:

     "A resposta do Senhor sobre se está permitido abandonar a vida conjugal, sem que seja o motivo a pornéia, se aplica por igual aos homens e às mulheres" (cânon 9).

     Esta mesma doutrina expressa São Basílio em uma obra fundamental, qual é Moralia, onde se manifesta muito rígido a respeito à simples separação. Mas, se por desgraça esta chega a realizar-se, "nem ao marido é lícito desposa-se com outra, nem tampouco a mulher separada de seu verdadeiro marido pode contrair novas núpcias."

     Quarto, porque a questão que se consulta não é um tema teórico, mas prático: se relaciona com a disciplina eclesiástica e, mais em concreto, se refere à práxis penitencial: que conduta seguir com esses matrimônios adulterinos? Devem ser aceitados à penitência pública reservada à essa classe de pecados? A resposta de São Basílio é que o homem abandonado por sua mulher e unido à outra é desculpável, de modo que pode manter sua comunhão eclesial.

     Em conseqüência, não estamos diante de um tema doutrinal, mas de práxis pastoral. Mas é evidente que esta norma pastoral permissiva deve ser avaliada: ao menos teve vigência na comunidade de Capadócia. Parece que a hierarquia de Cesaréia era indulgente com a situação do marido abandonado pela esposa e que convivia com outra.

     c) SANTO AGOSTINHO (> 430). Outro testemunho aduzido é Santo Agostinho. Ninguém duvida da contundência com que o Bispo de Hipona defende a impossibilidade de romper o vínculo na união esponsalícia dos cristãos, e inclusive nos matrimônios entre pagãos.

     Mas cita-se um testemunho que encerra certa dúvida sobre a práxis pastoral com os "divorciados". Encontra-se na obra De fide et operibus, um escrito também pastoral, que, concretamente, tem à vista as dificuldades que criam os matrimônios dos separados. Este é o texto:

     "Não é fácil deduzir das palavras divinas se a quem está permitido repudiar a esposa adúltera, é ou não adúltero se se casa com outra. Na minha opinião, este peca, mas de forma digna de perdão."

     O contexto pode ajudar a dar alguma luz. Santo Agostinho trata de responder a questão se cabe receber ao Batismo à uma pessoa que vive em concubinato, e Santo Agostinho, que havia mantido uma oposição intransigente no tratado De coniugiis adulterinis sobre este mesmo tema, aqui mostra suas dúvidas acerca de se deve ou não ser rechaçado. Como escreve Crouzel: "Santo Agostinho... parece ceder aqui à uma solução benevolente".

     d) Sentido destas "exceções pastorais"

     As respostas que cabe dar à estes casos são as seguintes:

     Em primeiro lugar, nos encontramos com alguns textos de difícil exegese. Mas, se estes eminentes pastores autorizam uma situação irregular nos três casos aduzidos, se trataria de uma concessão pastoral, que em nada obscurece a doutrina que se esclareceu ao longo da vida da Igreja. Na verdade, frente à enorme quantidade de testemunhos que caberia aportar em confirmação da indissolubilidade do Matrimônio, essas exceções apenas representam nada frente ao conjunto da literatura patrística sobre o tema.

     Não obstante, é preciso avaliar esses testemunhos, posto que, se essa é realmente a solução fornecida para tais casos, trata-se de resoluções dadas por três verdadeiros mestres da doutrina cristã. Além disso, São Leão Magno - que estudamos no capítulo seguinte - foi Papa, o que eleva a autoridade de seu Magistério. Parece que é conseqüente avaliar estas "dispensas", pois caberia considerá-las como um fio condutor para descobrir até onde chega a autoridade da Igreja na ordem de dispôr o que corresponde ao Matrimônio, instituição natural e Sacramento, tal como se estuda no próximo capítulo.

     No entanto, a tese fundamental dos Padres em favor da indissolubilidade do Matrimônio é permanente. Além disso, as investigações de Denner, Oggioni, Bonsirven, Crouzel, Rincón, etc. são muito respeitadas e, de fato, com poucas exceções, seus trabalhos orientaram a investigação posterior no sentido marcado por eles. Por outra parte, deve-se enfatizar que os testemunhos duvidosos são - ademais de escassos - ambígüos e questionáveis. Não há dúvida que a doutrina dos Padres se avalia não por textos esporádicos, mas pelo ensinamento explícito e acumulativo do "consensus Patrum".

     Ainda quando se fornecem outros casos, também duvidosos e menos conhecidos, tampouco cabe avaliar em igualdade à todos os outros testemunhos, pois na história da doutrina patrística há autores que brilham por sua própria inteligência, e figuram outros que apenas se sobressaltaram em seu ensinamento. Não é, pois, legítimo identificar com a doutrina comum o ensinamento particular, nem igualar a autoridade das figuras mais egrégias da patrística, como São Basílio e Santo Agostinho, com autores de segunda ordem.

     Como final dessa análise, vale o juízo de Crouzel: "Deve-se assinalar que três casos de indulgência não implicam nenhum reconhecimento da validez do segundo matrimônio, mas somente a vontade de não urgir a doutrina até as últimas conseqüências". Ou, como escreve T. Rincón: "Trata-se de um caso de tolerância para evitar maiores males".

     Não obstante, à partir do século IV, sobretudo depois de Santo Agostinho, a homogeneidade da doutrina patrística se universaliza. Desde essa época, a Igreja tem já consciência muito explícita da indissolubilidade do Matrimônio, de modo que os Pastores mostram-se mais rigorosos em exigir aos crentes que sejam fiéis ao compromisso dado. Esta convicção destaca tanto à nível de catequese, como de reflexão teológica.

     Excetua-se, como afirmado, o caso de Ambrosiaster, o qual afirma sem bases que em caso de adultério da mulher, ao marido está permitido a separação matrimonial com a possibilidade de celebrar novas núpcias. O tão citado texto é o seguinte:

     "Em caso de adultério, o marido pode abandonar a mulher e casar-se com outra. Não é assim com a mulher, pois o inferior não pode em absoluto usar da mesma lei que o superior... O homem é cabeça da mulher."

     Qualquer intenção de interpretar em outro sentido este texto está condenado ao fracasso. O Ambrosiaster expressa com claridade o que quis escrever. Os únicos atenuantes podem vir do fato de que não manifesta seu juízo com ocasião de interpretar as cláusulas de Mateus, mas o comentário à São Paulo, que não oferece dúvida alguma acerca da indissolubilidade do Matrimônio. Possivelmente com essa explicação, o autor desconhecido fazia mais compreensível a doutrina sobre o "privilégio paulino", que estava quase esquecido e que ele traz à superfície. Como escreve Crouzel:

     "O Ambrosiaster é o único autor eclesiástico dos cincos primeiros séculos que autoriza um novo matrimônio, tanto no caso de uma separação por adultério, como pelo privilégio paulino. E este autor é latino, dado bastante paradoxo, já que o Oriente e o Ocidente vão tomar mais tarde normas inversas à propósito dos novos matrimônios."

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