II. INTERPRETAÇÃO DAS CLÁUSULAS DE EVANGELHO DE SÃO MATEUS. ENSINAMENTO DOS PADRES
Dado que a maior objeção contra a indissolubilidade no Novo Testamento parte dos incisos do Evangelho de São Mateus, trazemos aqui a exegese que deles fazem os Padres. Existem bons e amplos estudos sobre o tema. Pelo que não trata-se de aportar todos os textos ao caso, mas de oferecer um estudo sintético do problema. Por exigências de método, distingüimos uma série de parágrafos que resumem esta ampla doutrina, que abarcam um período tão extenso da história da Igreja:
1. Compreensão dos "incisos"
Os Padres entenderam que os incisos de Mateus referem-se ao caso de adultério, e compreenderam que no texto se fala da possibilidade de contrair um segundo Matrimônio. Daqui a atenção que prestam ao texto das cláusulas de Mt 5, 32 e 19, 9, que poderiam supôr uma exceção. Encontramos no Capítulo IV que, assim como o denominado "privilégio paulino" (1 Cor 7, 12--16) não mereceu a atenção dos Padres, não ocorreu o mesmo com estes "incisos". Os comentários são numerosos e extensos, e neles assumem essas cláusulas em seu aspecto mais conflitivo.
Em conseqüência, a solução que dão ao caso merece ser considerada, não só pelo valor magisterial de que tem a interpretação da Escritura por parte dos Padres, mas também porque oferecem a doutrina sobre um tema não fácil, qual é a compreensão do ensinamento de São Mateus, que provoca uma série de questões que persistem até nossos dias.
2. Alguns testemunhos mais significativos dos três primeiros séculos
A leitura dos Padres de Mt 19, 9 - que, de fato, parece que não contemplam o texto tal como hoje lemos com a expressão "e se casa com outra" - é, em geral, de oposição à que, em caso de repúdio, Jesus autorize a nenhuma das partes a contrair um novo Matrimônio. Vimos as afirmações de Hermas, mas aqui amontoam-se os textos, até o ponto de que pode falar de unanimidade. Temos aqui alguns testemunhos mais antigos, mais representativos e plásticos. Depois desta época, sobretudo com Santo Agostinho, a doutrina patrística é unânime e compacta em negar a possibilidade de novas núpcias aos já casados.
É o caso, como vimos, do Pastor de Hermas, mas que repete-se nos demais autores desta primeira época. Assim, por exemplo:
a) JUSTINO (> 163), depois das citações de Mateus, comenta: "Por isso, para nosso Mestre, são pecadores os que contraem duplo Matrimônio conforme a lei humana".
b) ATENÁGORAS (> 177) parece contrapôr as leis divorcistas do Império, frente a nova lei do Matrimônio único, tal como declara São Mateus: "Cada um de nós tem por mulher a que tomou conforme às leis que por nós foram estabelecidas".
c) LACTÂNCIO (> 320) reprova os pagãos que, ao permitir o divórcio, facilitam o adultério, o qual vai contra a natureza, posto que a lei divina "uniu dois em um só corpo".
d) CLEMENTE ALEXANDRINO (> 216) escreve: "A Escritura aconselha casar-se, mas proíbe romper a união dos esposos. A lei diz assim:
"Não abandonarás tua mulher, exceto em caso de adultério". Mas a lei considera adultério o fato de que se case um dos dois que se separaram. A Escritura acrescenta: o que se une a mulher despedida comete adultério, mas também se considera que comete adultério o que despede a sua mulher, e a obriga a unir-se à outro. Por conseguinte, não só é culpável o que a despede, mas também o que a acolhe, pois deste modo lhe oferece a ocasião de pecar, já que, se não a acolhesse, a esposa infiel voltaria para seu marido."
A firmeza do Alexandrino contra os encratitas é contundente: lhes mostra os textos do Senhor e de Paulo, "e afirma que as segundas núpcias que se seguem à separação em nada se distingüem do adultério".
e) ORÍGENES (> 254), com o fundo das cláusulas de Mateus, não mostra dúvida alguma. Recolhe as palavras de São Paulo, "não ordeno eu, mas o Senhor", e escreve:
"Isto é o principal: o vínculo que se uniu não deve desfazer-se... Sim, pois ela se separa, que não se case ou que volte com seu marido, e assim mesmo que o marido volte com sua mulher."
Em outro texto, em comentário explícito à Mateus, Orígenes sentencia com esta claridade:
"De modo como a esposa, enquanto viva seu primeiro marido, é adúltera, embora aparentemente esteja unida a um homem, de igual modo não contrai Matrimônio o homem que se une à mulher repudiada, pois, segundo a resposta do Senhor, esse tal comete adultério."
Crouzel, que dedicou uma monografia ao tema em Orígenes, comenta: "Orígenes vê nos incisos de Mateus a separação, mas não o divórcio". E acrescenta que o Alexandrino contempla só o caso do homem inocente e não se apresenta a possibilidade de que a mulher se separe do marido, quando este leva uma conduta improcedente. Mas a solução de Orígenes neste caso seria afirmativa se tem-se em conta que fala da igualdade do homem e da mulher em outros temas relacionados com o Matrimônio, como são o debitum coniugale e a fidelidade.
f) TERTULIANO (> 240). Tertuliano é tão hostil à poligamia, que nega as segundas núpcias. O africano, ainda católico, contempla em sua obra De Patientia, que será um motivo de praticar esta virtude a espera de voltar a encontrar-se aqueles Matrimônios que se separaram, e que mantiveram sem unir-se em outro matrimônio. Pois bem, o cônjuge inocente praticará a paciência na espera; pelo contrário, ao adúltero lhe servirá para converter-se. O texto supõe que ainda a parte inocente não pode casar-se, pois, conforme o ensinamento de São Mateus, tal união daria lugar à um novo adultério.
Em sua obra Adversus Martionem, interpretado de modo tão diverso pelos comentaristas, escreve:
"Jesus Cristo abertamente proíbe o divórcio, enquanto que Moisés o permite... Em verdade, Cristo proibiu o divórcio de forma condicionada: no caso de que alguém despeça sua mulher para casar-se com outra... Quem se casa com uma mulher que foi ilicitamente repudiada... é adúltero. Subsiste o Matrimônio que não foi justamente dissolvido; e, dado que subsiste, levar à cabo outro matrimônio é adultério."
g) CIPRIANO (> 258), com citação expressa das palavras de São Paulo (1 Cor 7, 10-11) e com a vista posta nos incisos de Mateus, sintetiza à Quirino o ensinamento cristão sobre o Matrimônio com esta sentença: "Que a mulher não deve separar-se do marido ou, se se separa, não pode casar-se".
Este testemunho é de interesse, porquanto Cipriano não fala como teólogo nem faz exegese, mas ensina como um pastor da Igreja que recorda os fiéis o estilo de vida moral que impõe-se à conduta dos cristãos. Precisamente esta obra, Os testemunhos, situa-se nesse gênero literário, pois responde às petições do escritor Quirino, que lhe pede conselho acerca da instrução na fé cristã. Por isso, como afirma Denner, se tivesse alguma exceção da regra geral, Cipriano deveria manifestar à Quirino, à quem trata de transmitir uma formação completa do Cristianismo. Por sua parte, a brevidade do testemunho de Cipriano talvez se deva, como também aponta Denner, à que a doutrina já havia sido tratada extensamente por seu "mestre" Tertuliano e, como tal, era aceita pelos fiéis de sua Igreja.
À partir do século IV, os testemunhos são ainda mais contundentes. Por via de exemplo elegemos dois autores: um da Igreja do Oriente, São João Crisóstomo e Santo Ambrósio, como representante do Ocidente. Ambos repetem a frase de São Mateus sem conceder possibilidade alguma às chamadas "cláusulas de exceção".
h) AMBRÓSIO (> 397), no mesmo contexto, adverte:
"Deixas tua mulher e pensas que te és lícito porque a lei humana não o proíbe. Mas proíbe a divina... Ouça, pois, a lei divina que diz: "o que Deus uniu, não o separe o homem"."
i) CRISÓSTOMO (> 407), em oposição àqueles que invocavam as leis do Império, replica:
"Não me proponha as leis exteriores que permitem dar a carta de repúdio. Tu não serás julgado por elas, mas pela que Deus te deu... o que Deus uniu, não separe o homem."
3. Unanimidade ou divergência nos primeiros séculos?
Aqui recolhemos alguns textos mais representativos, e todos eles favoráveis à indissolubilidade à partir do ensinamento de São Mateus. Mas faz-se imprescindível formular a seguinte pergunta: cabe falar de unanimidade na doutrina patrística?
O Pe. Henri Crouzel, que tantos estudos dedicou ao tema, repete insistentemente que as diversas investigações levadas à cabo por ele, lhe permitem afirmar que "até o século III, os autores gregos e latinos são unânimes em condenar, e em conseqüência, em negar a autorização do divórcio: Hermas, Justino, Atenágoras, Teófilo de Antioquia, Tertuliano, Cipriano, Novaciano, Clemente Alexandrino e Orígenes são unânimes em afirmar essa doutrina". À partir dessa investigação, o Pe. Crouzel repete, se cabe com maior certeza, esta convicção.
Não obstante, nem todos os teólogos leram os Padres sob esse prisma. De fato, nos últimos anos alguns autores se esforçaram por descobrir nos escritos patrísticos antes de Nicéia, uma postura compreensiva, e em ocasiões permissiva, de um segundo matrimônio em caso de adultério, motivada especialmente pelos parênteses de Mateus. É o caso, por exemplo, do canonista norte-americano, católico de rito oriental, Víctor J. Pospishil; de dois autores franceses: o teólogo Pe. J. Moingt e o patrólogo M. Pierre Nautin; e do teólogo italiano Giovanni Cereti.
E J. Pospishil é um canonista de rito oriental, que tem à vista mais os cânones da Igreja do Oriente que os documentos da Igreja latina, se bem que seus argumentos fundamentais os deduz dos textos duvidosos de alguns Padres do Ocidente. À modo de tese, Pospishil escreve:
"A maioria dos Padres e escritores eclesiásticos permitem o matrimônio dos separados que convivem de modo adúltero em favor da parte inocente."
H. Crouzel criticou seriamente tanto a análise dos textos sobre os que se fundamenta, como as conclusões que Pospishil pretende deduzir de seu estudo.
O teólogo Pe. J. Moingt publica no ano de 1968 um artigo no que defende a mesma tese de Pospishil. Nesse artigo, afirma: "Até o século IV e V, todos os Padres que, de modo explícito, propõem o caso de adultério, exceto Jerônimo e Agostinho, que são os únicos que proíbem aos esposos separados o direito de voltar a casar-se". Apesar da amplitude do artigo, Moingt apenas cita mais bibliografia que o art. Adultère do DTC, as breves páginas que ao tema dedica o R. Bonsirven, e as citações esporádicas que se encontram no livro de Dupont.
Como era de esperar, também o Pe. Crouzel respondeu de modo contundente à este trabalho, do que afirma que "está viciado de apriorismo", dado que Moingt, sempre que encontra um texto no que os Padres falam de separação, "ele o entende que permite o novo matrimônio do inocente; mas não é assim". Crouzel mostra com numerosos documentos, a falta de consistência da tese Pe. Moingt.
O patrólogo Nautin propõe que os Bispos reunidos no Concílio de Arles no ano 314, interpretaram o texto de São Mateus como se Cristo tivesse autorizado um novo matrimônio em caso de adultério. Este artigo foi contestado por H. Crouzel, que mostra que a leitura que faz Nautin não é correta.
Esse mesmo ano, Nautin mostra as conseqüências de suas teses em outro artigo, no que intenta provar que a Igreja do Ocidente, ao menos depois de Tertuliano, seguiu essa mesma práxis. Também esse artigo foi contestado por Crouzel, o qual afirma que Nautin fez uma leitura interessada dos Padres, e que os textos aduzidos não garantem as conclusões que ele oferece.
Posteriormente, o teólogo Giovanni Cereti publica uma extensa monografia na que quer mostrar que a Igreja antiga, até São Jerônimo e Santo Agostinho, admitiu o segundo matrimônio dos divorciados, com motivo de adultério, e por isso pretende que a Igreja atual assuma a mesma disposição.
Também neste caso, este livro teve a correspondente réplica de Crouzel, que abunda em razões muito convincentes desde o ponto de vista exegético, ao mesmo tempo que mostra novos dados de como se devem interpretar os textos aduzidos por Cereti.
Esses autores, em geral, aportam uma leitura distinta, e em todo momento destacam os textos patrísticos mais duvidosos. Não obstante, não cabe silenciar suas razões e argumentos. O fato mesmo de seu estudo testifica, ao menos, que nos encontramos ante um tema no que não cabe apresentar uma tese com total e absoluta rotundez, sem fissura alguma, embora seja com o nobre desejo apologético de defender a doutrina atual da Igreja. Pelo contrário, a verdade demanda em toda ocasião que se faça com o rigor do que foi realmente o ensinamento dos Padres. Pois, de fato, dão-se textos duvidosos e, ao menos um autor, o Ambrosiaster, defende a possibilidade de um novo matrimônio do marido em caso de adultério da esposa.
As exceções - se há - haverá de explicá-las: em ocasiões trata-se de que os Padres da Igreja foram lentamente descobrindo a verdadeira doutrina; algumas vezes estamos ante aplicações à um caso original e concreto ao que deram uma solução fácil, oposta à verdadeira doutrina que professavam; em outras trata-se de "claudicações" dos pastores, e não faltam casos nos que cabe interpretá-los como verdadeiros "erros" dos Padres ou dos Pastores: também o erro tem história. Não obstante, tais interpretações equivocadas hão de ser compreendidas, pois a história mostra que os "erros" foram a ocasião para aprofundar a verdade. No presente caso, os erros ajudam a descobrir os poderes especiais que tem a hierarquia e dos quais a Igreja vai tomando consciência com o tempo.
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