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INTRODUÇÃO
O teólogo - e também o crente em Cristo - tem que estar familiarizado com a inter-relação que existe entre a Sagrada Escritura e a Tradição. Conforme a doutrina católica que recolhe a Constituição Dei Verbum do Concílio Vaticano II, "a Tradição e a Escritura constituem o depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado a Igreja" (DV 10). Por isso, se dá entre ambas uma mútua e íntima relação: "A Tradição e a Escritura estão estreitamente unidas e compenetradas: emanam da mesma fonte, se unem em um mesma coisa, tendem ao mesmo fim" (DV 9).
Neste Capítulo expõe-se a doutrina da Tradição, cuja voz mais autorizada, segundo afirma o Concílio, é o ensinamento dos Padres: "As palavras dos Santos Padres atestam a presença viva dessa Tradição, cujas riquezas vão passando à prática e à vida da Igreja que crê e reza" (DV 8). Deste modo, pela interpretação dos Padres, além de aperfeiçoar o ensinamento da fé católica da instituição familiar segundo os planos de Deus, alcança-se a veracidade da exegese dos textos bíblicos. De fato, um dos serviços mais qualificados que os Santos Padres fizeram à Igreja, foi a interpretação da Sagrada Escritura:
"Os Padres são primeiro e essencialmente comentadores da Sagrada Escritura: divinorum librorum tractatores (Santo Agostinho)... seus méritos para uma melhor compreensão dos Livros Sagrados são incalculáveis. Eles permanecem para nós verdadeiros mestres, e pode-se dizer superiores, sob tantos aspectos, aos exegetas do Medievo e da Idade Moderna por "uma espécie de suave intuição das coisas celestiais, por uma admirável penetração do espírito, graças às quais vão mais adiante no aprofundamento da palavra divina" (Pio XII).
A doutrina da Tradição se exporá brevemente, pois não é fácil resumir a riqueza de dados que oferece a história no campo da Teologia, assim como no âmbito do Direito Canônico. A brevidade da documentação que aqui aportamos, está garantida pela abundante bibliografia que existe sobre o tema. De fato, os estudos sobre a história do Matrimônio e da Família nos primeiros séculos da Igreja são muito numerosos.
Aqui oferecemos somente os testemunhos que contemplam mais proximamente a situação atual de ambas as instituições, com o fim de iluminar as dificuldades e ofertar uma ajuda as aspirações de nosso tempo.
Neste Capítulo aportam-se os dados mais destacados em torno à unidade e indissolubilidade do Matrimônio. Também aponta-se brevemente o caráter sacramental, e expõe algumas considerações dos Padres sobre a finalidade do Matrimônio. As questões relacionadas com a função procriadora e outras exigências éticas na Família se tratam nos Capítulos respectivos.
Convém adiantar que na história do Cristianismo não se repete a crônica da corrupção tão considerável à que esteve submetido o Matrimônio no Antigo Testamento. Ao contrário, a doutrina de Jesus Cristo e dos Apóstolos deu lugar a que o Matrimônio monogâmico e indissolúvel se institucionalizasse nos povos que se converteram à fé, até o ponto de que as irregularidades que aqui citamos, são verdadeiras exceções à lei geral que se impôs pela ação dos cristãos.
Esta reforma profunda do Matrimônio e da Família, afetou o conjunto da geografia pagã, não só da Grécia e de Roma, mas também daqueles outros ambientes culturais onde se estendeu o Cristianismo, quais são, por exemplo, os países do Oriente, América e África na medida em que foram evangelizados. Daí que a extensão do divórcio e certa prosmicuidade nas relações homem-mulher, que caracterizam amplos setores da cultura ocidental de nosso tempo, significa um lamentável retrocesso a épocas que pareciam já definitivamente superadas.
I. O MATRIMÔNIO NO ENSINAMENTO DOS SANTOS PADRES
Os Santos Padres, bem a nível de ensinamento catequético, ou no âmbito da exegese aos textos bíblicos, transmitem uma doutrina abundante sobre a natureza do Matrimônio. Frente a legislação e à práxis social da época, na que o divórcio tinha plena vigência, reconhecida pelas legislações, primeiro da Grécia e Roma, e mais tarde pelas leis dos povos germanos, os Padres defendem a unidade e indissolubilidade da instituição familiar tal como ensina a Escritura; se bem que dão algumas vacilações doutrinais, e se outorgam exceções na vida pastoral.
No entanto, em conjunto, cabe extrair uma doutrina ética bastante elaborada sobre as questões principais que interessam ao Matrimônio e à Família. Mas, com o fim de fazer uma interpretação próxima aos textos, será preciso fixar alguns critérios de interpretação.
1. Princípios metodológicos para a reta interpretação dos textos patrísticos
Dado que dão-se explicações diversas sobre os textos da literatura patrística, impõe-se uma questão prévia de hermenêutica para a reta compreensão dos mesmos. É preciso formular algumas normas metodológicas que orientem a exegese das afirmações dos Padres. Neste aspecto, destacam-se os estudos de Henri Crouzel e de Tomás Rincón.
a) Os textos divorcistas do direito civil, mesmo dos Imperadores cristãos, não cabe admiti-los como doutrina assumida pela Hierarquia
- Quem mantêm que a Igreja primitiva foi permissiva em torno ao divórcio, com a possibilidade de contrair um novo Matrimônio, argumentam sobre esse suposto: "Os cristãos não podiam fazer aquilo que o direito civil não permitia". Contudo, esse princípio assumido de modo acrítico silencia um fato incontrovertido: o de que os cristãos deste período mantiveram atitudes de condenação contra o permissivismo do Estado. Os testemunhos dos Padres são numerosos. À esse respeito convém alegar a norma formulada no século IV por São Jerônimo, mas vivida já desde o início do Cristianismo: "Uma coisa são as leis de César, e outra a lei de Cristo; uma coisa é a lei de Papiniano, e outra a de Paulo...".
D'Ercole fornece numerosos testemunhos de oposição a ordem jurídica estabelecida. Por conseguinte, esses dados dão valor ao princípio invocado, ou seja, que os cristãos seguissem a práxis do Império.
- Também esses autores reforçam sua tese no fato de que não existia uma legislação cristã sobre o Matrimônio, pelo que, em sua opinião, o vigente juridicamente era o Direito Romano que permitia o divórcio, ao qual deviam também submeter-se os cidadãos romanos convertidos ao Cristianismo. Esta argumentação supõe que os primeiros cristãos identificavam "legalidade" com "moralidade". Mas as Atas dos Mártires provam claramente o contrário. É evidente que houve exceções, pois sabe-se que alguns casais cristãos se acomodaram por conveniência à lei civil divorcista. Mas estes casos eram submetidos a graves penitências quando intentavam reconciliar-se com a Igreja.
- Esses mesmos autores insistem em que ainda os Imperadores cristãos emitiram leis que permitiram o divórcio. Esta normativa divorcista do Império à partir do século IV necessita alguma precisão. É certo que inclusive as leis emitidas depois da conversão dos Imperadores eram divorcistas. Mas o motivo era que legislavam não só para os católicos, mas para todo o Império. A atitude cultural da época, assim como as situações sociais nas que se estendeu o Cristianismo, condicionaram a ação legislativa dos Imperadores cristãos. Eles não podiam mudar bruscamente o direito matrimonial romano, sem deixar de produzir uma subversão de toda ordem social.
Mas, quando o Cristianismo se converteu na religião oficial, a atitude dos crentes era tão crítica, que se pretendeu exigir a práxis cristã sobre a indissolubilidade, mesmo aos não batizados, pois concebia-se a doutrina de Gênesis 2, 24 como um plano geral da Criação, pelo que a norma anti-divorcista devia obrigar também aos pagãos. Esta aspiração não se obteve até o século X - em concreto, à partir de Carlos Magno -, quando a Igreja assumiu o controle legal sobre o Matrimônio, e desbancou a influência do poder civil. Desde então, o Direito Canônico regulou o Matrimônio entre os batizados, e orientou a legislação civil sobre o mesmo.
Em concreto, resulta evidente que, se bem não existia "uma legislação cristã", os crentes tinham consciência de que não lhes era permitido o que garantia o Direito Romano vigente. Ademais, o Direito Romano "não obrigava a casar-se novamente, mas permitia". Pelo que os cristãos da época adotaram a mesma disposição que a que se assume em nosso tempo, nas nações em que se permite o divórcio: podem-se "separar" juridicamente, mas recusam contrair novas núpcias.
Os primeiros cristãos tinham consciência que eles constituiam uma porção separada dos costumes da época. Daqui deriva o nome de "paróquia" (colônia estrangeira): eles consideravam-se uma colônia apartada dos costumes pagãos de um povo, no meio do qual viviam. Disso dá testemunho o Discurso a Diogneto:
"Os cristãos, habitando as cidades gregas ou bárbaras, segundo a sorte que a cada um cabe, dão mostras de um teor de peculiar conduta, admirável, e, por confissão de todos, surpreendente... Obedecem as leis estabelecidas, mas com sua vida sobrepassam as leis."
b) Rito civil e Rito religioso na administração do Matrimônio
Aqueles que se recusam a interpretar a literatura antiga em chave divorcista, tratam de argumentar à partir do fato de que a celebração do Matrimônio cristão não disponha de rito próprio. Pelo que, concluem, o Matrimônio entre os crentes era um Matrimônio puramente civil. Este era, em conseqüência, afirmam, o que contemplam os Padres.
Mas tal interpretação dos testemunhos patrísticos carece também de fundamento, se com ele quer-se legitimar o divórcio, pois, se bem é certo que nos primeiros séculos não se conhece uma liturgia católica distinta para a celebração dos Matrimônios entre batizados, existiu uma oração cristã que acompanhava a celebração.
"Os meios judeu-cristãos conservaram evidentemente a liturgia doméstica do matrimônio judeu: orações improvisadas pelos pais dos esposos e bençãos nupciais recitadas ao longo da alimentação de bodas. Para a redação do contrato matrimonial, era normal recorrer à um membro do clero... Com tal ocasião, a família cristã podia convidar o presbítero ou o Bispo, a pronunciar uma pregação pelos esposos. Assim, os meios judeu-cristãos puderam de modo natural adotar esses usos... No Ocidente não conhecia-se cerimônia litúrgica alguma da que dependesse a validez eclesial do Matrimônio dos fiéis... Mas na Igreja da África nota-se a presença do Bispo para assistir a leitura das "tabulae nupciales."
Não obstante, é certo que fora das particularidades, os dados que possuímos sobre a celebração do Matrimônio cristão são escassos. Mas a constatação de que os batizados mantiveram a práxis de celebrar entre si os Matrimônios conforme os usos da época, não quer dizer que seus ritos tivessem proximidade alguma com o matrimônio civil atual, tal como celebra-se depois da Revolução Francesa. O matrimônio no âmbito cultural antigo era sempre um ato religioso, e neles invocava-se a ação protetora dos deuses. Pelo que os cristãos não podiam menos de suprimir essas práticas de culto às divindades pagãs. Daí que, desde o começo, junto às cerimônias "laicas" de seu tempo, adicionaram as invocações à Cristo. Consequentemente, sem ser um rito tipicamente cristão, o Matrimônio entre os crentes adotou, em todo o mundo, um ambiente cristão ao ritmo de "uma lenta e progressiva liturgização".
Por conseguinte, os Padres em seus escritos não contemplam o "matrimônio civil", mas a "união em Cristo", e à ela aplicam a doutrina do Novo Testamento do Matrimônio cristão.
c) Distingüir entre "separação" e "divórcio"
Porque a terminologia não está, todavia, suficientemente fixada, é preciso distingüir claramente entre "separação" dos cônjuges, e divórcio, ou seja, separação com possibilidade de iniciar novo matrimônio.
Quando os Padres falam de ruptura do Matrimônio, não entendem conforme o Direito Romano, a saber, com a possibilidade de contrair um novo matrimônio, mas expressam a simples separação dos esposos. Alguns autores querem descobrir nos textos patrísticos que falam de "separação" no conceito romano de divórcio, com possibilidade de contrair novas núpcias. É certo que abundam os textos patrísticos que afirmam que, em caso de adultério, "rompe-se" o Matrimônio; ou também que os cônjuges se "desligam". Contudo, estas expressões nos escritos dos Padres não têm um sentido técnico, mas significam que, efetivamente, não cabe Matrimônio "entre três", pelo que o adultério "rompe" o Matrimônio. Daqui a permissão do cônjuge inocente de que pode "separar-se", mas sem a possibilidade de "unir-se" em novas núpcias.
Por conseguinte, estes textos não empregam o termo "ruptura" in sensu stricto. Inclusive juristas como Tertuliano, quando em seus escritos usam esses termos, não o fazem em sentido teológico ou jurídico, mas vulgar. Daqui que, esses mesmo autores - se se excetua o Ambrosiaster - em outros textos, inclusive na mesma página, negam que o adúltero ou a parte abandonada possam contrair novo matrimônio.
"Ver nos termos "ruptura" ou "dissolução" do Matrimônio, à causa do adultério, a permissão de um novo matrimônio, é imaginar que os Padres o usam em sentido técnico, segundo o sentido do Direito Romano... É, pois, um anacronismo projetar sobre os textos antigos o sentido técnico que tem hoje, e que não se encontra nos textos jurídicos anteriores à Justiniano."
d) Aspecto moral, doutrina teológica e dimensão jurídica do divórcio
Para julgar a doutrina dos Padres, é preciso ter em vista este triplo aspecto que afeta a instituição matrimonial. Ao menos nos esposos cristãos, o divórcio encerra sempre uma dimensão ética porque se viola um valor moral. Daqui que incida na consciência dos cônjuges. Ao mesmo tempo refere uma dimensão jurídica, porquanto regula direitos e deveres dos contraentes. E ambas dimensões derivam da realidade teológica do Matrimônio.
Pois bem, quando nos encontramos com um testemunho patrístico que mostra-se tolerante com o divórcio, é indispensável julgar se o ensinamento dos Padres refere-se ao aspecto teológico (porquanto hesitaria na doutrina), ou considera tão somente a dimensão jurídica ao não exigir o cumprimento da norma, ou se atende o aspecto moral, ante o qual o hierarca assume uma atitude de perdão.
No primeiro caso, estaríamos diante de um estado de erro doutrinal; no segundo, trataria-se de uma situação de jure ou de fato, ou seja, de tolerância; e a terceira refletisse a atitude de acolhimento, a saber, de perdão. Como faz notar T. Rincón, é preciso sobretudo distingüir nos textos dos Padres as situações de tolerância, que consentem no divórcio para evitar males maiores - quaestio de facto -, daqueles casos em que mantêm a doutrina e tratam de que cumpram a norma - quaestio de jure -. Aquela seria "uma atitude pastoral frente à uma situação já criada, mas não querida, nem permitida pela Igreja".
e) Os textos obscuros hão de ser interpretados segundo os testemunhos mais explícitos, "sed non contra"
Este critério hermenêutico tão elementar deve aplicar-se rigorosamente à nosso tema. É claro que na abundante literatura patrística - em ocasiões tão pouco sistemáticas - podem-se citar textos que, na pura literalidade, cabe interpretá-los ao menos como duvidosos em relação a indissolubilidade do Matrimônio. Agora, estes textos obscuros devem ser interpretados à luz do ensinamento expressado pelo autor na mesma obra, ou em outros escritos. Se resulta que sua doutrina é contrária à do texto duvidoso, será preciso interpretá-lo à luz dos testemunhos mais explícitos do autor sobre o mesmo tema.
f) Rigor científico no uso dos textos
Outras vezes os testemunhos que se alegam são textos recortados, que se citam fora do contexto em que estão escritos. Nestes casos, não só se prescinde desta elementar regra hermenêutica, mas falseia-se o testemunho mesmo aduzido.
Dão-se outros critérios insuficientes para enfrentar-se com a literatura patrística, tais como adotar uma postura prévia que faça dizer aos textos o que não se contêm neles; formular conclusões gratuitas que não permite deduzi-las dos testemunhos citados; abusar de "hipóteses de trabalho" que são adiantadas, sem que logo se aduzam provas ao efeito; apelar continuamente ao "argumento do silêncio", quando, em geral, cabe aduzir abundantes testemunhos que negam tais silêncios; a preferência por alegar testemunhos obscuros e silenciar os claros; a insuficiência das análises históricas, etc.
Henri Crouzel advoga pelo estudo rigoroso dos Padres com estas palavras:
"Não há, pois, que forçar a interpretação de numerosos testemunhos legados pelos Padres, fazendo-lhes passar por umas peneiras interpretativas que em realidade estão em contradição com os dados históricos. O único método aceitável é o que estuda os textos segundo o que verdadeiramente dizem, utilizando os meios da filologia e da crítica textual, e sobretudo, tendo em conta os contextos, o imediato ou o mais amplo da obra a que pertence a passagem, o que proporciona todo o conjunto da obra do autor, ou da época em que este escreve. Para levar à cabo este trabalho não basta com boas intenções. O desejo de provar uma tese, embora seja com o fim de aliviar a situação de tantos divorciados que contraíram segundas núpcias, não conduz mais que falsear a história."
2. Unidade do Matrimônio
Os Padres, apoiados nos dados bíblicos, em especial de Gênesis 2, 24 e da interpretação levada à cabo por Jesus (Mc 10, 2--12 e par.) assim como da doutrina dos Apóstolos (1 Cor 7, 10--11), sublinham em todo momento a natureza monogâmica do Matrimônio. Aqui transcrevemos alguns testemunhos que destacam por sua rotundez e grafismo:
a) CLEMENTE ALEXANDRINO (> 216) formula esta clara definição: "Matrimônio é a primeira sociedade pela que, segundo a lei, se une um homem e uma mulher para viver juntos, e educar os filhos". Essa unidade é reclamada pelo Alexandrino com modelos tomados inclusive de animais: "alguns dos quais, por exemplo, as pombas... e outras feras se unem em casal, o qual faz que sejam mais austeros que os mesmos humanos". Por isso o homem há de esforçar-se para viver com sua própria mulher. O paradigma é a relação Cristo-Igreja: Cristo se manifesta como o Esposo único da Igreja.
A decisão de Deus sobre o casal humano é o que confirma a Igreja, baseada no exemplo de Cristo, seu único Esposo. Clemente Alexandrino se esforça em mostrar que a Igreja não afirma do Matrimônio mais que o que ensina Cristo, porque Ele é seu Esposo. "Por isso, cada um de nós tem liberdade para casar-se segundo a lei, com aquela mulher que eleja: me refiro ao primeiro Matrimônio."
O Alexandrino comenta a poligamia permitida no Antigo Testamento: "tomar uma segunda mulher, escreve, não estava proibido pela lei". A razão de tal permissão aos Patriarcas foi "porque era necessário fomentar a descendência e multiplicar-se; não por concessão às paixões do homem".
b) HIPÓLITO DE ROMA (215) repete a mesma sentença referente ao costume de apresentar novos candidatos possivelmente para ser batizados. A primeira lição da catequese cristã aos esposos, versava sobre a unidade matrimonial: aos casados "se lhes há de ensinar que o marido viva contente com sua mulher, e a mulher com seu marido". O que está solteiro, que ou bem "tome mulher - segundo consta a lei -, ou que fique solteiro".
c) TERTULIANO (155-220) recorre ao casal Adão e Eva para legitimar o Matrimônio monogâmico: Deus instituiu o Matrimônio para propagar a espécie, mas o homem "só pode ter uma mulher", assim como "Adão foi o único marido de Eva, e esta única mulher de Adão: uma mulher, uma costela".
Em relação à poligamia, Tertuliano lamenta seu início com Lamek; recrimina as desordens a que conduziu, pois provocou o Dilúvio, e coloca como modelo o caso de Noé e sua família, que constituíam Matrimônios monogâmicos.
d) MINÚCIO FÉLIX (II-III s.) se expressa com um grafismo semelhante e com esta contundência: ao homem solteiro só se lhes oferecem duas opções: "ter uma mulher ou nenhuma".
3. Indissolubilidade do Matrimônio
Essa unidade do Matrimônio é a que induz os Padres a defender a indissolubilidade do casal enquanto viva um dos cônjuges. Ante a dificuldade de aportar tanto dado como caberia, adiantamos alguns dos testemunhos mais antigos e explícitos que dão conta do pensamento do Padres sobre a doutrina de Jesus Cristo sobre a indissolubilidade do Matrimônio.
a) "O PASTOR" DE HERMAS (141-155). Já no começo da literatura cristã, o Pastor propõe a doutrina que é como eco imediato dos ensinamentos do Novo Testamento. O testemunho é de grande importância, pois, além da sua proximidade com as fontes, expõe com claridade a doutrina sobre a indissolubilidade do Matrimônio. O ensinamento é resposta a umas perguntas muito concretas que tocam "in recto" nosso tema:
"Perdão, mas quero fazer-te umas perguntas". Essas são as três que propõe:
"Se alguém tem mulher fiel no Senhor e a surpreende em adultério, peca o homem que convive com ela?". Essa é a resposta: "Enquanto ignora, não peca; mas se o homem sabe o pecado dela e a mulher não se arrepende, mas persevera em sua fornicação, se neste caso convive com ela, faz-se réu de seu pecado e participa da fornicação".
A segunda pergunta é demandada pela resposta anterior: "E o que há de fazer o marido se ela persiste em seu pecado?". Responde: "Repudia-a e viva só, porque se depois de repudiá-la se casar com outra, também ele comete adultério".
Contudo, se ela se converte, o marido deve aceitá-la; do contrário, seria culpável. E a razão é que perdura o Matrimônio; por isso não pode casar-se o cônjuge fiel: "Assim, pois, pela possibilidade de penitência da mulher, não deve casar-se o homem".
O diálogo conclui com esta afirmação: "Isto vale tanto para a mulher quanto para o homem, pois também o homem pode cometer adultério".
Deste modo, um testemunho tão antigo da fé de qual era a doutrina cristã sobre a indissolubilidade do Matrimônio nos primeiros tempos da Igreja.
b) ORÍGENES é contundente: cita as palavras de São Paulo (1 Cor 7, 10--11) e conclui:
"O princípio é que uma vez que se levou à cabo o vínculo, não pode romper-se. Certamente, pode dar-se muitos motivos pelos que se rompa o vínculo, por exemplo, que a mulher seja adúltera... Então que se separem, mas neste caso não foi quebrado o vínculo, pelo que não é possível voltar a casar-se. Que perseverem assim, ou que juntem-se novamente."
c) TERTULIANO escreve:
"Vejamos o que é motivo ante Deus para saber o que significa adultério: Matrimônio é a união de dois, levada à cabo por Deus para formar uma só carne, e aos dois unidos em uma carne os abençôou. O adultério é, em realidade, o contrário: é introduzir um terceiro no meio dos dois, de forma que já não se possa dizer "esta é carne de minha carne, e ossos de meus ossos"... Portanto, quem não repudia o adultério, adultera ele mesmo."
Para nosso tema, a conclusão que cabe deduzir destes testemunhos é a seguinte: no caso de que uma das partes cometeu adultério, o marido - ou a esposa - inocente não pode casar-se, e deve estar à espera de que a parte infiel se arrependa para iniciar novamente a vida em comum. A razão é que o Matrimônio perdura e não pode romper-se em vida dos cônjuges, mesmo no caso de que o cônjuge inocente dê o conseguinte repúdio à parte culpável de adultério.
Estes testemunhos são de excepcional importância. Especialmente destaca o do Pastor, dada a autoridade deste escrito nos primeiros séculos, já que, desde o século XI, é citado tanto pela Tradição da Igreja latina, como pelos Padres orientais. Não é, pois, estranho que essa doutrina seja considerada como o paradigma do que havia de ser no futuro a Tradição cristã em seu conjunto.
Não é deste lugar aportar uma antologia de textos à respeito. Não obstante, se esclarecerá com os testemunhos que seguidamente oferecemos acerca da interpretação das "cláusulas de exceção" do Evangelho de Mateus. As recopilamos em dois parágrafos: o ensinamento dos Padres e as normas jurídicas que se recolhem nas Coleções Canônicas. O primeiro situa-se no âmbito da doutrina, o outro regula a práxis na vida cristã na Igreja. Assim se conjugam e complementam teologia e direito.
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