"As obras de Suas mãos são verdade e justiça; Imutáveis os Seus preceitos; Irrevogáveis pelos séculos eternos; Instituídos com justiça e eqüidade." - Salmo 110, 7-8

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Divorciados recasados na Igreja antiga?

     Ressurge uma superada tese historiográfica, segundo a qual consentia-se a volta aos Sacramentos dos fiéis em tal situação, depois de um período penitencial.


     Recentemente, no âmbito da discussão sobre a possível readmissão aos Sacramentos dos divorciados recasados, de distintas partes fez-se um chamamento à práxis da Igreja antiga, a qual, segundo alguns, havia consentido habitualmente a volta aos Sacramentos dos fiéis em tal situação depois de um período de penitência, segundo a modalidade da penitência pública.
     Trata-se, em realidade, de uma tese de nenhum modo compartilhada e já rechaçada no passado pelos estudiosos; como ocorre não poucas vezes, no entanto, algumas teses historiográficas que pareciam superadas, emergem periodicamente para serem utilizadas como "evidências de apoio" em polêmicas de nossos dias.

     Tem sido enfatizada por não poucos comentaristas como o argumento se apoia principalmente sobre o Cânon VIII do Concílio de Nicéia, do ano 325; portanto um texto muito autoritário. O Cânon trata da readmissão dos chamados catharoi (puros), que na Igreja antiga identificam-se com os "novacianos"; uma seita de tendência rigorosa que trouxe o cisma de Novaciano, sacerdote romano que no século III rompeu a comunhão com o Bispo romano Cornélio,fazendo-se ordenar em sua vez Bispo, justificando-se com motivações de tipo disciplinar que nosso Cânon indiretamente recorda. Novaciano rechaçava a readmissão à comunhão da Igreja os apóstatas e os adúlteros; também depois da penitência pública. Portanto, o Cânon niceno dispõe que o "puro", para ser readmitido, deve "prometer por escrito aceitar e seguir os ensinamentos da Igreja Católica e Apostólica, ou seja, de permanecer em comunhão seja com quem se casou duas vezes (digamos, em grego), seja com quem fracassou durante a perseguição, mas tem em conta o tempo e as circunstâncias da penitência". 

     Segundo a interpretação que estamos discutindo, a Igreja antiga havia readmitido aos Sacramentos os divorciados recasados depois de um tempo de penitência, uma eleição rechaçada pelos novacianos rigorosos, mas práxis habitual para toda a Igreja de então, o suficiente para ser chamada em um Cânon do Primeiro Concílio Ecumênico, um procedimento destinado no entanto a sobreviver só na Igreja oriental. No Ocidente havia prevalecido precisamente as tendências rigorosas condenadas pelo Cânon.

     A primeira observação a fazer é de caráter geral: a consciência de que a Igreja antiga tinha sobre as bodas estava então em plena evolução, e a percepção do Matrimônio como Sacramento estava madurando lentamente. As coordenadas gerais da reflexão moviam por um lado a clara afirmação do Senhor sobre a indissolubilidade do Matrimônio; pelo outro a percepção social ratificada pelo Direito Romano, pelo qual não colocavam nenhum problema no divórcio. A posição de todos os Padres, embora seja com acentos diversos, é indiscutivelmente de defesa e de promoção da indissolubilidade do Matrimônio, ainda tratando-se de uma doutrina em fase de clarificação. As primeiras formulações realmente sistemáticas e inequívocas que orienta para o reconhecimento da sacramentalidade do Matrimônio encontramos em Agostinho, no início do século V, quase um século depois de Nicéia. Já estas considerações óbvias deveriam bastar para renunciar a tirar conclusões rápidas para o hoje sobre os textos e as práxis da Igreja antiga. A segunda observação tem a ver com o sentido literal do texto em questão. O Cânon propõe duas categorias de pessoas com as quais os "puros" devem aceitar viver em comunhão: quem se casou duas vezes (digamos) e quem fracassou durante a perseguição do terceiro século - ou seja, apostatou, mas fez penitência. Consideramos sobretudo esse segundo caso, sobre o que não há problemas de interpretação: as grandes perseguições do século III, culminadas com as de Diocleciano do início do IV, estalaram de repente, e haviam se intensificado no entanto por um tempo relativamente limitado.

     Tais circunstâncias colocavam à dura prova aos cristãos, e um  número significativo deles, preocupados pelos sucessos, haviam apostatado de forma mais ou menos manifesta. Terminada a perseguição, muitos desses apóstatas pediam voltar à Igreja. Sua readmissão depois da penitência pública ao início do século IV era práxis compartilhada na Igreja, mas os grupos rigorosos, como os novacianos, não haviam aceitado nunca tal práxis. Então, obviamente, a disciplina eclesiástica previa que os apóstatas deviam retirar sua apostasia, renegar publicamente os ídolos e passar alguns anos de penitência para consolidar a própria conversão, e demonstrar à própria comunidade seu arrependimento real.

     Em definitivo, para ser readmitidos, os penitentes deviam restituir a causa de seu afastamento. O caso do nosso Cânon põe-se em paralelo por alguns intérpretes com o de quem se "casou duas vezes". Se se trata de divorciados recasados submetidos a penitência (e, como veremos dentro de pouco, não está claro), como pode-se pensar que foram readmitidos , ainda depois de seu período penitencial, sem haver eliminado a causa de seu afastamento? Ou seja, sem renunciar ao segundo matrimônio? A lógica do texto, se é lido segundo um rígido paralelismo, imporia esta interpretação.

     No entanto tal conclusão é puramente hipotética; de fato o texto do Cânon não fala em absoluto de um período de penitência prévio para os digamoi, nem fala só à propósito dos apóstatas; a leitura que assimila os dois casos é provavelmente tendenciosa, e sobretudo força o texto: daqueles que estão casados duas vezes não se diz que foram submetidos à penitência pública; formavam parte da Igreja e basta. A Igreja antiga admitia talvez o divórcio sem pestanejar?

     Uma terceira observação se impõe e se faz em torno ao significado do termo grego digamos. O primeiro significado do termo é idêntico ao italiano (também espanhol) bígamo: um homem com duas mulheres (simultâneas). Mas evidentemente aplica-se aqui o segundo significado, freqüente nos autores cristãos do primeiro século: homem que ascende ao segundo Matrimônio uma vez acabado o primeiro. A discussão sobre a legitimidade do segundo Matrimônio de fato dura desde o século II ao V, mas não tem a ver com os divorciados recasados: o termo digamos (e digamia), junto ao termo oposto monogamos (e monogamia) convertem-se nos termos técnicos que acompanham a larga controvérsia sobre o segundo Matrimônio dos viúvos.

     A importância da questão deriva evidentemente do fato que, por um lado, as palavras dos Senhor sobre a "única carne" formada pelos esposos pareciam excluir essa possibilidade; pelo outro lado, no entanto, a duração média da vida de então, muito inferior a de hoje, e a jovem idade das meninas no momento do Matrimônio, implicava a presença na comunidade de um número muito significativo de viúvos, e sobretudo de viúvas em idade de marido. Também desta última condição, sobre a base da Escritura, que se tinham em alta estima, tanto que as viúvas - como é bem sabido -, constituiam um ordo institucional.

     A Igreja reconheceu lentamente a plena legitimidade do segundo Matrimônio dos viúvos - é necessário para isto esperar ao menos até o final do século IV; anteriormente foram concedidas, mas não realmente impulsionadas. Os rigorosos no entanto consideravam os viúvos recasados da mesma forma que os adúlteros: um "adultério apresentável", segundo a definição de Atenágoras, apologista do século II que nem sequer é considerado um rigoroso (Supplica, 33, 2).

     São numerosos os textos que testificam o uso do termo digamos, ou do respectivo monogamos, para indicar a condição de viuvez no relacionado com o segundo Matrimônio. Um exemplo encontramos nas cartas de Jerônimo que, em torno ao século V, testemunha a validez técnica dos termos, conservados em grego, em referência ao estado de viuvez: "qui de monogamia sacerdos est, quare viduam hortatur ut digamos sit?" (ep. 52, 16).

     Frequentemente o significado de tais termos é dado como certo pelo autor, portanto a leitura permanece exposta a interpretações errôneas, mas em alguns casos seu uso é realmente indubitável; por exemplo nas Constituições Apostólicas (em dois passos: 3,2,2 y 6.17.1), uma coleção canonista, na que é definido monogamos como o que não se casa novamente. Um testemunho muito claro do significado técnico  de digamos no século III é Orígenes, que fala da condição da viúva à respeito ao segundo Matrimônio no quarto parágrafo da vigésima homilia sobre Jeremias; à propósito deste texto, é necessário observar a distinta atitude dos autores modernos: Pierre Nautin, o grande patrólogo que realizou a edição de Sources Chrétiennes das homilias de Jeremias, anota pontualmente que trata-se da questão das segundas núpcias das viúvas (SC 238, pp. 268-269, notas 1 e 2); Luciana Mortari, tradutora italiana da Série de Estudos Patrísticos, ao contrário, afirma que trata-se da questão dos divorciados recasados, citando como justificação a práxis penitencial da Igreja oriental (na realidade: Ortodoxa) (Série de Estudos Patrísticos 123, p. 265, nota 43); finalmente no Dicionário de Orígenes, na voz "Matrimônio" de Julia Sfameni Gasparro, entre os maiores especialistas da matéria. o texto em questão é de novo colocado corretamente no âmbito da questão do Matrimônio das viúvas (p. 269).

     Um "monumento" à questão é constituído pelo tratado De monogamia de Tertuliano, de seu período montanista, que exclui portanto totalmente a possibilidade de segundas núpcias para quem ficou viúvo. Esta última anotação nos ajuda a voltar ao significado do Cânon de Nicéia. De fato, Sócrates Escolástico, um historiador de começos do século V sempre bem documentado, que por outra parte manifesta claras simpatias pelos novacianos, afirma que os novacianos que estavam "em torno aos Frígios" não acolhiam aos digami (em História da Igreja, 5, 22, 60), precisamente a questão afrontada pelo Cânon de Nicéia. Os montanistas (chamados também frígios ou catafrígios, por seu lugar de origem) e os novacianos haviam-se unido em um único movimento rigoroso, chamado precisamente os "puros", como são definidos no Cânon Oitavo do Concílio de Nicéia. 

     Qual é, portanto, o sentido do Cânon? Os "puros", para voltar a entrar na Igreja Católica, deviam aceitar viver em comunhão com os viúvos e viúvas que haviam se casado novamente (e que não haviam necessitado fazer penitência pública) e com os apóstatas que haviam se reconciliado com a Igreja depois da penitência oportuna. Digamos, sem mais especificações, usa-se como termo técnico no sentido dos viúvos que se casaram novamente, como é lógico que seja em um Cânon disciplinar. Nada a ver com os divorciados recasados. O equívoco nasceu evidentemente da idéia que uma alegada práxis tolerante em matéria matrimonial da Igreja antiga, foi conservada na atual práxis da Igreja ortodoxa; uma hipótese sugestiva mas longe de ser provada, me parece. Na realidade, como vimos, para os viúvos, na Igreja antiga a tendência prevalente em relação às bodas era mais próxima aos rigorosos que as posições "tolerantes".

     Pessoalmente, não saberia dizer se e como, hoje os divorciados recasados possam ser readmitidos aos Sacramentos: é uma questão complexa onde estão em jogo a indissolubilidade do Matrimônio, e a acolhida a oferecer à todos. Não trata-se portanto, de uma simples questão disciplinar, como recordou o Papa recentemente. O que me parece claro é que, se se querem apontar argumentos para apoiar a readmissão dos divorciados recasados aos Sacramentos, não pode-se realmente remeter à práxis da Igreja antiga.


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