Por: Frei Nelson Medina
Necessitava-se um nome para o surgimento, há uns dois anos, de uma onda de exitosos protestos no Norte da África. Ver que o mundo podia superar os obscuros anos de Kadafi, e que Tunísia ou Egito podiam abrir-se a possibilidades novas de governo foi como deixar para trás um longo inverno, e ver nascer uma primavera. De modo explicável tornou-se viral a expressão: “primavera árabe”.
Como geralmente sucede, o uso relativamente exitoso de um termo conduz a uma multidão de usos exagerados ou forçados. Mas antes de continuar, note-se que cabe questionar quão primaveral têm sido a situação em vários dos lugares que mudaram drasticamente seu horizonte social neste últimos 30 meses. Creio que vários analistas viram nestas revoltas uma expressão unânime e contundente de opção pela democracia, e logo, sobre o pressuposto de que a democracia tem que ser um grande bem, sentaram-se a esperar que no mundo islâmico se constituíssem partidos políticos, plataformas de pensamento e eleições populares, de modo que se pode dizer que, agora sim, esses povos tomaram responsavelmente as rédeas de seu próprio destino. Não foi assim. Os fatos estão demonstrando que parte do dano que um tirano deixa em sua queda é um país dividido não só por facções mas por verdadeiros ódios. E o ódio não deixa pensar; não admite diálogo; detesta as eleições justas.
Outro problema é que não resulta tão simples para um muçulmano admitir que seu voto, e por conseguinte sua palavra, valha o mesmo que a de um "infiel", a saber, de um não-muçulmano, e isso, por suposição, inclui aos cristãos. De fato, a idéia de que há cidadãos de pleno direito, e outros que nunca o serão inteiramente, resulta do mais natural em boa parte do mundo árabe. Se em alguns desses lugares uma mulher não pode conduzir legalmente um automóvel, pois já podes imaginar se as mudanças da primavera árabe os farão muito semelhantes ao que nós geralmente entendemos por uma vida justa, livre e digna. Caso dramático, por exemplo, o da Síria, onde não se vê um futuro brilhante nem melhor para os cristãos, embora caia o regime de Bashar al-Assad. Tudo isto para dizer que cantar triunfo, e sobretudo triunfo "ocidental", nos países árabes é, quando menos, muito apressado.
Apesar dessas e outras ambigüidades, o termo "primavera" custa demasiado para ser relegado sem mais. Alguns já falam de uma "primavera vaticana", aludindo sem dúvida ao que se quer esperar e também exigir à partir do modo "Francisco" de ser Bispo de Roma. Em meio das incertezas naturais de uma transição, que ademais foi atípica, pode-se ler coisas como essa:
Difícil sintetizar o número de mentiras, falsas premissas e meias verdades que traz esse artigo, mas já se vê o que pretendem os que usam o termo de outrora.
Hans Küng, que a meu entender cunhou o "meme", sentiu o dever de ser mais explícito em declarações anteriores:
Há várias coisas que tem em comum essas duas chamadas primaveras, a árabe e a vaticana. Em primeiro lugar, em ambos os casos se crê que se trata de um avanço da democracia, e que o democrático só pode ser bom. Em segundo lugar, muitos pensam que as redes sociais e os novos recursos de comunicação, tipo internet ou SMS, foram e serão fundamentais nas mudanças que vierem. Talvez com essa esperança alguns abriram uma página em inglês sobre a Primavera Vaticana, a qual, a estas horas (final da Sexta-feira Santa) conta com a impressionante presença e respaldo de... 52 pessoas. Permita-me algo de ironia, pois o subtítulo da tal página se traduz assim: "Movimento global para pressionar o Papa Francisco e a Igreja Católica para ações decisivas com respeito à crise pelo abuso sexual de menores".
O que mais me chama a atenção é essa confiança ilimitada nos movimentos populares e naquele que surge da base, potenciado talvez pelos meios de comunicação da tecnologia contemporânea. Esta gente das primaveras, de verdade crê que o poder de decisão e de ação reside no povo. Exatamente é esse o erro bíblico, teológico e histórico fundamental. A Igreja não nasce do povo. Não é, então, fruto de uma transferência parcial de poder ao modo que o governo em uma república civil recebe do constituinte primeiro, a saber, do povo a delegação para exercer umas funções legislativas, judiciais ou executivas.
Assim que, por favor, não tantas primaveras. Bem nos basta com a primavera de eterna e bendita luz que resplandece no Corpo do Ressuscitado.
Fonte: Tal vez el mundo es Corinto
Necessitava-se um nome para o surgimento, há uns dois anos, de uma onda de exitosos protestos no Norte da África. Ver que o mundo podia superar os obscuros anos de Kadafi, e que Tunísia ou Egito podiam abrir-se a possibilidades novas de governo foi como deixar para trás um longo inverno, e ver nascer uma primavera. De modo explicável tornou-se viral a expressão: “primavera árabe”.
Como geralmente sucede, o uso relativamente exitoso de um termo conduz a uma multidão de usos exagerados ou forçados. Mas antes de continuar, note-se que cabe questionar quão primaveral têm sido a situação em vários dos lugares que mudaram drasticamente seu horizonte social neste últimos 30 meses. Creio que vários analistas viram nestas revoltas uma expressão unânime e contundente de opção pela democracia, e logo, sobre o pressuposto de que a democracia tem que ser um grande bem, sentaram-se a esperar que no mundo islâmico se constituíssem partidos políticos, plataformas de pensamento e eleições populares, de modo que se pode dizer que, agora sim, esses povos tomaram responsavelmente as rédeas de seu próprio destino. Não foi assim. Os fatos estão demonstrando que parte do dano que um tirano deixa em sua queda é um país dividido não só por facções mas por verdadeiros ódios. E o ódio não deixa pensar; não admite diálogo; detesta as eleições justas.
Outro problema é que não resulta tão simples para um muçulmano admitir que seu voto, e por conseguinte sua palavra, valha o mesmo que a de um "infiel", a saber, de um não-muçulmano, e isso, por suposição, inclui aos cristãos. De fato, a idéia de que há cidadãos de pleno direito, e outros que nunca o serão inteiramente, resulta do mais natural em boa parte do mundo árabe. Se em alguns desses lugares uma mulher não pode conduzir legalmente um automóvel, pois já podes imaginar se as mudanças da primavera árabe os farão muito semelhantes ao que nós geralmente entendemos por uma vida justa, livre e digna. Caso dramático, por exemplo, o da Síria, onde não se vê um futuro brilhante nem melhor para os cristãos, embora caia o regime de Bashar al-Assad. Tudo isto para dizer que cantar triunfo, e sobretudo triunfo "ocidental", nos países árabes é, quando menos, muito apressado.
Apesar dessas e outras ambigüidades, o termo "primavera" custa demasiado para ser relegado sem mais. Alguns já falam de uma "primavera vaticana", aludindo sem dúvida ao que se quer esperar e também exigir à partir do modo "Francisco" de ser Bispo de Roma. Em meio das incertezas naturais de uma transição, que ademais foi atípica, pode-se ler coisas como essa:
"...na Europa vem fazendo caminho o conceito Primavera Vaticana que não é outra coisa que o ressurgir ou florescer de uma Igreja cujos dois últimos monarcas mantiveram uma tradição medieval. O Papa emérito Bento XVI, em que pese o plausível de sua renúncia, deixou entrever os problemas que pairam sobre uma igreja endurecida que não pôde incorporar os jovens, que não define e respeita o papel das mulheres em sua instituição, e em particular, que não toma posição ante o sem número de denúncias de abuso sexual suportado em uma justiça civil tímida, de pouca reação ante os delitos cometidos."
Difícil sintetizar o número de mentiras, falsas premissas e meias verdades que traz esse artigo, mas já se vê o que pretendem os que usam o termo de outrora.
Hans Küng, que a meu entender cunhou o "meme", sentiu o dever de ser mais explícito em declarações anteriores:
"A primavera árabe sacudiu toda uma série de regimes autoritários. Agora que renunciou o Papa Bento XVI, será possível que ocorra algo similar na Igreja Católica, uma primavera vaticana? Por suposição, o sistema da Igreja Católica, mais que a Tunísia ou Egito, se parece a uma monarquia absoluta como Arábia Saudita. Em ambos os casos, não foram feitas autênticas reformas, mas concessões sem importância. Em ambos os casos, se evoca a tradição para opôr-se a reforma. Na Arábia Saudita, a tradição só se remonta há 200 anos atrás; no caso do papado, há 20 séculos."
Há várias coisas que tem em comum essas duas chamadas primaveras, a árabe e a vaticana. Em primeiro lugar, em ambos os casos se crê que se trata de um avanço da democracia, e que o democrático só pode ser bom. Em segundo lugar, muitos pensam que as redes sociais e os novos recursos de comunicação, tipo internet ou SMS, foram e serão fundamentais nas mudanças que vierem. Talvez com essa esperança alguns abriram uma página em inglês sobre a Primavera Vaticana, a qual, a estas horas (final da Sexta-feira Santa) conta com a impressionante presença e respaldo de... 52 pessoas. Permita-me algo de ironia, pois o subtítulo da tal página se traduz assim: "Movimento global para pressionar o Papa Francisco e a Igreja Católica para ações decisivas com respeito à crise pelo abuso sexual de menores".
O que mais me chama a atenção é essa confiança ilimitada nos movimentos populares e naquele que surge da base, potenciado talvez pelos meios de comunicação da tecnologia contemporânea. Esta gente das primaveras, de verdade crê que o poder de decisão e de ação reside no povo. Exatamente é esse o erro bíblico, teológico e histórico fundamental. A Igreja não nasce do povo. Não é, então, fruto de uma transferência parcial de poder ao modo que o governo em uma república civil recebe do constituinte primeiro, a saber, do povo a delegação para exercer umas funções legislativas, judiciais ou executivas.
Assim que, por favor, não tantas primaveras. Bem nos basta com a primavera de eterna e bendita luz que resplandece no Corpo do Ressuscitado.
Fonte: Tal vez el mundo es Corinto
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