"As obras de Suas mãos são verdade e justiça; Imutáveis os Seus preceitos; Irrevogáveis pelos séculos eternos; Instituídos com justiça e eqüidade." - Salmo 110, 7-8

domingo, 13 de julho de 2014

Matrimônio e Família nos Santos Padres, nos Concílios Particulares e nas Coleções Canônicas (Parte VIII - Final)


3. Testemunhos das Coleções Canônicas

     Como indica seu mesmo nome, representam uma recopilação de cânones de origem muito diversa, que suprem a falta de uma regulação universal na Igreja. Os "códigos" jurídicos, tanto no campo civil como no religioso, são de época muito recente. Os Estados e a Igreja regeram-se ao longo de sua dilatada história por normas que surgem dos costumes do povo e que alcançam o estatuto jurídico na medida em que são aplicados à vida pela autoridade legítima. Mais tarde, essas normas "escrevem" e se ordenam ate constituir coleções de leis mais ou menos amplas, que algum dia constituirão o "código" civil ou canônico de um povo, com referendo da máxima autoridade civil da nação respectiva ou da Hierarquia da Igreja. Pelo contrário, todas as Coleções Canônicas do primeiro milênio têm por autor à um particular, sem que a autoridade eclesiástica as referende de modo oficial, embora algumas, como a Gregoriana do século XI ou a Dionisíaca, sejam contempladas com simpatia pelos Papas.

     Daqui que as distintas Coleções Canônicas que chegaram até nós não gozem do mesmo prestígio nem tem o mesmo valor jurídico. De modo geral, sua importância e autoridade derivam de dois critérios: do prestígio do autor que recopila os cânones e do âmbito geográfico no que exerciam influência. Neste sentido, gozam de maior autoridade as coleções que se aplicam em amplos âmbitos eclesiais, que aquelas que só tem valor em um território delimitado. Assim, a Hispanha era reconhecida universalmente, enquanto que outras coleções, por exemplo, os cânones dos Sínodos que vimos no parágrafo anterior, se aplicavam só na Igreja Particular que os havia emitido, a não ser que caíssem nas mãos de um recopilador que anexasse alguns deles à uma coleção mais ampla. Adiantamos o juízo de García y García:

     "Seria vão intento tratar de encontrar textos de sinal divorcista nas coleções de caráter universal. Mas é freqüente a afluência de textos divorcistas nas coleções de sinal particular, sobretudo dos penitenciais."

     De fato, este gênero de literatura que regula a penitência, situa-se entre a Teologia Moral, o Direito e a Pastoral. Tratava-se de especificar as penitências e em ocasiões de tarifá-las, de forma que os pecadores, uma vez cumprida a penitência imposta, se reconciliassem com a Igreja.

     As Coleções penitenciais surgem de modo especial nas igrejas céltico-anglo-saxãs, que se caracterizam por ser práticas, ou seja, querem solucionar os problemas concretos dessas comunidades. São, pois, muito particulares, em nenhum caso tem em conta o sentir da Igreja universal e em não poucas ocasiões mostram-se contrárias à disciplina de Roma:

     "O particularismo ou afastamento da legislação universal, de inspiração pontifícia, se devia à aversão da população celta para com Roma, condicionada pelo fato de que os missionários romanos nas Ilhas Britânicas se ocupavam preferentemente dos saxões, convertidos ao Cristianismo desde o ano de 678."

     É lógico que os casos de separação matrimonial e de adultério se repitam nestes Penitenciais. Em ocasiões, são "casos imaginários", mas outras vezes se trata de dados reais. Por isso os pastores contemplam tais circunstâncias e dão a resposta que lhes parece mais oportuna. Esta vem determinada pela competência do próprio do próprio pastor, segundo a responsabilidade ministerial e inclusive conforme a altura moral e cristã de que goza ele e a comunidade que dirige.

     As soluções são de índole muito diversa. Alguns parece que admitem a separação por consentimento mútuo, e assim foi interpretado por certos autores atuais. Mas outros afirmam que, em tais casos, se trata de uma simples separação feita de comum acordo, sem possibilidade de contrair novas núpcias. O único texto que fala de um segundo matrimônio adverte que é segundo os gregos, mas não é canônico.

     Os casos mais freqüentes nos que cabe citar textos que possibilitam segundas núpcias em vida de outro cônjuge são: se se deu adultério, se o marido é abandonado por parte da esposa, quando um dos dois é liberado da catividade, por impotência do varão e por dissolução da condição servil.

     Decididamente é que alguns destes cânones não só aparecem  nos Penitenciais de autores desconhecidos e de aplicação local, mas que, devido ao caráter de recompilação que têm todas as coleções da época, alguns cânones divorcistas passam à coleções mais autorizadas, como é o caso de Regino de Prüm, Burcardo de Worms, Ivo de Chartres e o Decreto de Graciano, que admitem em suas obras alguns cânones dessas coleções.

     Regino de Prüm (840-915) recolhe os cânones de tão duvidosa origem como são os do Concílio de Verberie, anteriormente citado.

     Em resumo, Regino é uma coleção mista desde o ponto de vista do divórcio, ou seja, que recolhe por sua vez textos divorcistas e anti-divorcistas, embora prevaleçam muito os primeiros.

     É sabido a importância que teve o Decreto de Burcardo de Worms (1023-1025), cujo primeiro objetivo foi servir de legislação na Diocese e que logo é reconhecida por outras Igrejas locais. Pois bem, nesta importante coleção recorta os limites da possibilidade de divórcio, mas não obstante, também recolhem-se alguns textos divorcistas.

     No livro 9 do Decreto de Burcardo há, pelo menos, nove capítulos que proíbem o divórcio nos casos em que habitualmente admitem os textos divorcistas. Em outros (que eram divorcistas) Burcardo introduz uma partícula negativa que diz que o texto queria dizer todo o contrário. Mas entremeado com os capítulos anteriores, alterna em Burcardo uma longa série de textos divorcistas, que procedem dos documentos de Compiègne e de Verberie.

     Os casos de divórcio que se recolhem nas coleções de Ivo de Chartres (1040-1115) e de Graciano (1160), são mais escassos e todos eles são citações de cânones anteriores. Mas isto mesmo confirma que um autor pode recolher em sua coleção cânones divorcistas - ele atua como simples investigador que recolhe a herança do passado -, e no entanto sua doutrina é contrária aos cânones que menciona. É o caso, por exemplo, de Hincmaro de Reims, que se destaca pela defesa da indissolubilidade do Matrimônio e argumenta contra qualquer concessão ao divórcio e, no entanto, em sua coleção aparecem cânones que permitem o divórcio.

     Como se explica que neste período, no que a doutrina negadora de qualquer tipo de divórcio, é já comum que se repitam cânones que o admitam? A explicação é que nesta época a doutrina vai adiante da prática recolhida nos cânones. Como escreve Cantelar:

     "A doutrina comum dos teólogos e canonistas deste período mostra-se tão favorável à indissolubilidade do Matrimônio ou, acaso, mais favorável que a mesma legislação. Talvez a maior preocupação dos autores deste tempo foi precisamente buscar uma explicação que salvaguardasse a indissolubilidade do Matrimônio frente à realidade de alguns casos de divórcio que a Igreja admitia."

     De fato, nestes séculos, cabe mencionar uma série de teólogos e escrituristas que afirmam claramente a indissolubilidade do Matrimônio, que não aceitam o divórcio por causa de adultério e interpretam corretamente as cláusulas de São Mateus. Por exemplo: Rábano Mauro (776-822), Haligario (> 831), Jonatas (818-843), Pascácio Radberto (790-865), etc.

     Não é, pois, um erro doutrinal que provoca essas hesitações no campo do direito. Pelo contrário, a causa destes cânones divorcistas está já assinalada: o caráter privado e recopilador de tais coleções, que pretendiam somar o maior número possível de cânones, sem criticar sua procedência. Também, como é sabido, a aceitação na sua coleção não supunha a aprovação do conteúdo, como se deixa ver em anotações. Em todo caso, convém destacar que os Papas muito longe de acomodar-se à essas coleções privadas.

CONCLUSÃO

     Estes são os dados que aporta a acidentada história da Igreja. Tais fatos transmitem, por sua vez, parte das normas jurídicas que foram julgados, assim como através deles conhecemos a doutrina teológica que os sustenta. Poderia-se deduzir que o divórcio foi sempre um fenômeno mais ou menos freqüente, ao que a norma canônica teve que julgar e que o ofício magisterial viu-se forçado a condenar, apesar do permissivismo das leis civis.

     Em resume, caberia afirmar que a doutrina católica sobre a indissolubilidade do Matrimônio esteve clara nos Santos Padres, aparece a exceção em alguns cânones dos Concílios Particulares e a prática divorcista ou anti-divorcista se mescla nas Coleções de cânones de origem mais ou menos localista.

     Mas, como dizíamos, para entender esses distintos níveis é preciso ter à vista algumas normas de interpretação:

     - Em nenhum momento deve-se perder a perspectiva histórica. A Igreja no primeiro milênio se desenvolve e um âmbito cultural muito pobre, e se desenvolve em áreas geográficas isoladas do centro de Roma. Não só havia escassa comunicação com o Papa, mas inclusive, dentro da mesma região, as Dioceses viviam separadas umas das outras. As vantagens que hoje se proclamam em favor da autonomia das Igrejas Particulares, possivelmente são menores que os benefícios que se seguiram desde que o grande Papa Gregório VII, nos começos do segundo milênio, decide intervir desde Roma com mais freqüência e em maior número de assuntos na administração de toda a Igreja. O relativo centralismo da reforma gregoriana acabou, em boa medida, com a arbitrariedade de alguns pastores e poderes civis que pretendiam dirigir à seu capricho aspectos importantes da vida da Igreja. Em concreto, à respeito ao Matrimônio, as vacilações em torno às suas características essenciais não voltaram a repetir-se à nível de Magistério.

     - Se se observam de perto os motivos que se aduzem para contrair novas núpcias são em essência os mesmos que o direito canônico atual assinala como impedimentos, que dirimem um Matrimônio. À vista disto, é previsível que alguns textos que hoje lemos, as litteram, declarem que tais matrimônios não eram válidos, o qual implicava a permissão de novas núpcias. Mas não sabemos elucidar quando se trata de impedimentos antecedentes ao matrimônio ou de anomalias que se seguiram a celebração do mesmo. Em todo caso, não se pode pedir à esses "copiladores" a ciência jurídica que custou séculos investigar com o fim de esclarecer o tema sempre difícil sobre as circunstâncias que fazem impossível a união conjugal, e que, se o matrimônio contrai-se com tais impedimentos, resulta nulo.

     - Algumas decisões sinodais não eram mais que restos da legislação romana, e vimos como a normativa da Igreja em todo momento teve que conviver e, na maioria dos casos, fazer-se contrária à legislação civil vigente. Também o direito civil da época estava submetido ao arbítrio dos mais poderosos, que não são sempre os mais amantes da justiça, mas são partidários para resolver os problemas em favor da próprio circunstância pessoal. É o poder e não a justiça a arma do que goza do domínio sobre os demais. O caso de Lotário no tempo do Papa São Leão Magno, que recolhemos no Capítulo seguinte, é paradigmático.

     - Se se analisam de perto, os casos mencionados são quase sempre situações limite, que merecem um estudo especial. É certo que a vida ordinária dos matrimônios cristãos conduzia-se por rotas mais normais. Na antigüidade cristã, o divórcio apresentava-se com menor freqüência que em nossos dias, pois, por pura lei da história, as situações anormais eram menos freqüentes que as que apresenta a vida atual. E, quando surgiam, aos esposos, apesar dos costumes rudes da época, eram mais fáceis aceitá-las. Diante de tais casos, alguns pastores com muito escassa formação teológica e em ocasiões com deficiente vida moral pessoal atuam segundo as circunstâncias, pressionados muitas vezes por aqueles que suscitavam o problema, que ordinariamente pertenciam à classe social dominante. Estas decisões, tal como dizíamos, em nenhum caso expõe uma doutrina autorizada, mas trata-se de declarações de oportunidade prática.

     Finalmente, a história sempre ensina. Nesta ocasião a lição orienta-se ao presente e ao futuro. Por isso, os debates em torno ao poder da Igreja para dissolver certos matrimônios, faz pensar que nos encontramos diante de uma matéria que ainda não está suficientemente clara. No Capítulo que segue, teremos ocasião de ver as hesitações do Magistério em relação a harmonizar a indissolubilidade do vínculo com a prática de dissolver alguns matrimônios que se denominam "naturais". Mas, ainda não é fácil explicar como um Matrimônio, Sacramento, rato e não consumado, pode ser dissolvido pela autoridade do Papa. Há, de fato, razões teológicas e jurídicas que conhecemos, mas é evidente que foi preciso muito tempo para aportá-las, e que ainda ficam obscuridades por esclarecer.

     Ademais, como aponta Gaudemet, a última contribuição do final deste amplo período da história foi a distinção, largamente intuída, entre nulidade do matrimônio e dissolução do vínculo. Ao longo do século XII, a distinção entre nulidade ab initio do matrimônio e a dissolução de um Matrimônio validamente contraído já aparece com claridade. É evidente que esta importante distinção havia evitado não poucas insuficiências que denotam escritos de alguns Concílios e Coleções canônicas. Mas as idéias têm seu tempo e a história em ocasiões é lenta em formular os princípios que regem as grandes instituições da humanidade.

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