Mas o que com caráter geral - se é que não foi em comum - se mantêm à nível de ensinamento teórico, não tive a mesma aplicação no terreno pastoral. Pois, ademais dos casos mencionados, consta que alguns pastores, na prática pastoral, se mostraram condescendentes em situações singulares e permitiram um segundo matrimônio ao cônjuge inocente que havia sido abandonado. Os dois testemunhos aduzidos - no caso de que essa seja sua verdadeira interpretação - são uma prova disso. Mas ademais tem-se constância por este testemunho explícito de Orígenes:
"Em oposição à Escritura, alguns chefes da Igreja consentiram em um novo matrimônio à uma mulher cujo marido ainda vive. Permitiram apesar do que está escrito: "A mulher está ligada ao marido que ainda vive, e se considera adúltera à aquela mulher que se entrega à outro marido quando ainda viva o primeiro. Não obstante, estes pastores atuaram assim não por motivos vãos, posto que tal autorização foi permitida para evitar mares maiores, contrariamente à lei das Escrituras"."
Orígenes neste texto constata, segundo seu saber, um fato que se dava realmente nas comunidades de seu tempo. Por conseguinte, parece que nos primeiros séculos alguns pastores permitiram um segundo matrimônio à algumas mulheres inocentes e abandonadas por seus maridos.
Não obstante, sem negar esses fatos e apoiados na literalidade do texto, convêm adicionar duas qualificações:
Primeira: o Alexandrino disse expressamente que tal fato se opõe à Escritura. E é sabido a autoridade que Orígenes concede em todo momento à palavra revelada escrita. Por conseguinte, Orígenes no âmbito doutrinal condena essa prática dos pastores.
Segunda: ao mesmo tempo manifesta certa compreensão com essa prática, ao menos não a condena com a severidade que caberia esperar. Esse dado responde ao caráter conciliador que em todo momento manifesta esse eminente teólogo, ao modo como em ocasiões lamenta que os pastores reconciliaram alguns pecadores sem antes submetê-los à penitência pública, mas nesta ocasião se abstêm de condená-los.
Em todo caso, Orígenes não cede na doutrina, posto que ademais de afirmar expressamente que tal permissão "se opõe à Escritura", ao final do capítulo adiciona que a segunda união de tal mulher é legítima!, de modo que vive em irregularidade grave, pois "é adúltera, embora aparentemente esteja unida à um homem".
Esta posição de Orígenes, de defender a doutrina e não ser severo com as claudicações de alguns pastores, caberia referi-la à outros setores da Igreja nos primeiros séculos. Como escreve Munier:
"A Igreja antiga admitiu certas causas legítimas de separação... Mas em qualquer caso os Padres demandam a volta do adúltero e recomendam seriamente à parte inocente que não pode casar-se enquanto viva o outro cônjuge, não só por respeito à lei da indissolubilidade, ensinada na Sagrada Escritura, mas também por fidelidade ao ideal da monogamia... A lei da indissolubilidade foi entendida na Igreja antiga de maneira muito estrita. Os Padres aludem aos textos escriturísticos que a proclamam. Eles declaram que, ainda em caso de separação por infidelidade, o fato mesmo de voltar à se casar é um atentado à essa lei. No entanto, os atentados à lei da indissolubilidade são julgados e sancionados de modo diverso. Assim alguns chefes da Igreja, mais inclinados à indulgência, se abstêm de pronunciar as sanções canônicas... Isto não quer dizer que eles sacrifiquem os princípios aprovando expressamente os matrimônios em questão, mas que buscam o mal menor e tratam de evitar as situações desastrosas que se seguiriam."
Possivelmente esses casos de permissividade ante certas situações graves, que alguns pastores julgavam "mal menor", é o que levou a que certos sínodos particulares e algumas coleções canônicas acolhessem essas práxis. Deste modo, essas normas pastorais passaram às Coleções Canônicas. Mas isto nos remete ao segundo tema antes enunciado, ou seja, a tratar da separação e o divórcio na legislação particular da Igreja no primeiro milênio, que se expõe no Apartado III.
6. Doutrina dos Padres sobre a sacramentalidade do Matrimônio cristão
Neste tema se dividem os autores: alguns descobrem a afirmação da sacramentalidade desde cedo, desde o começo da literatura cristã. Outros, pelo contrário, apenas se encontram rastro algum para explicar a sacramentalidade do Matrimônio na Patrística.
Sem mediar na disputa e menos ainda pretender buscar uma linha média, as análises de ambas aportações fazem pensar que talvez as divergências se situam mais na metodologia que nas afirmações fundamentais. É evidente que a teologia sacramental é muita tardia. Inclusive a fixação em sete os Sacramentos se estabelece de modo definitivo no século XII. Por conseguinte, tratar de encontrar nos Padres, de maneira expressa e elaborada, a afirmação sacramental da união dos esposos cristãos é um intento vão e, se se faz, é seguro que se violentam os textos.
Não obstante, ao modo como desde os primeiros séculos os "sete Sacramentos" ocupam um lugar de privilégio, de maneira semelhante, o Matrimônio entre os batizados, se bem não menciona de modo expresso como "Sacramento" no sentido em que esse termo adquire na teologia posterior, se ocupa uma atenção especial e se louva de forma que obriga a concluir que os Padres encontram na união dos esposos cristãos uma presença qualificada de Jesus, o qual põe na pista de descobrir a raiz sacramental do Matrimônio como fonte de tal dignidade.
A história do Sacramento do Matrimônio na teologia escolástica é sobretudo a história de sua lenta admissão à dignidade de sinal verdadeiramente eficaz da graça.
Pois bem, parece que esse processo começa com o início da literatura cristã. Aqui estão os dados mais relevantes:
É freqüente que os escritos dos Padres relacionem o matrimônio dos convertidos com sua nova situação na Igreja. Aqui estão os testemunhos mais primitivos:
- SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA, em carta à outro hierarca, São Policarpo, recolhe o texto de Ef 5, 25 e prescreve:
"À respeito dos que se casam, esposos e esposas, convêm que celebrem seu enlace com conhecimento do Bispo, afim de que o casamento seja conforme o Senhor (katà Kyrion) e não só por desejo (kat' ipithymíam). Que tudo se faça para honra de Deus."
- CLEMENTE ALEXANDRINO introduz o termo "agiástai" (santificar) no Matrimônio que se realiza em Cristo:
"O Matrimônio é santificado quando se realiza conforme ao Logos (kata lógon), se o casal se submete à Deus e o vínculo se leva à cabo com coração sincero na seguridade da fé, que purificou a consciência culpável dos cristãos, os quais lavou seus corpos na água pura e comunicam na esperança."
Parece que em seu tempo, sem que possa se falar de um rito exclusivamente cristão, o sacerdote impunha as mãos sobre os esposos. Em todo caso, o Alexandrino destaca a santidade do Matrimônio cristão.
- TERTULIANO parece que argumenta sempre sobre o modelo de "Sacramento", entendido como "sinal": Adão e Eva são figuras de Cristo e da Igreja. Por sua vez, a imagem de Cristo-Igreja configura o Matrimônio entre os batizados. Cristo restaurou a pureza original do Matrimônio monogâmico, que se inicia no Paraíso.
Em um texto muito citado, parece que Tertuliano menciona a existência de um rito especial no Matrimônio cristão. E se não fosse assim, os termos que usa e os efeitos que produz situam o Matrimônio na órbita que a teologia medieval denomina "Sacramento". O escritor africano faz este elogio da união esponsal entre os batizados:
"Como descreverei a felicidade desse Matrimônio que a Igreja une, que a entrega confirma, que a benção sela, que os anjos proclamam, e ao que Deus Pai tem celebrado?... Porque verdadeiramente são dois em uma só carne, e onde há uma só carne deve haver um só espírito... Ao contemplar esses lares, Cristo se alegra, e envia-lhes Sua paz; onde estão dois ali está também Ele, e onde Ele está não pode haver nada mal."
- SÃO CIPRIANO, apesar de suas alusões ao Matrimônio são sempre muito de passagem, cita Ef 5, 31-32 e escreve que a relação Cristo-Igreja é a figura do Matrimônio cristão. Por isso anima à que os dois confessem sua fé no momento do martírio.
Caberia aportar mais textos patrísticos que manifestam a grandeza religiosa do Matrimônio cristão, mas, como dissemos mais acima, não é fácil demonstrar a sacralidade do Matrimônio nos testemunhos dos Padres pela razão de que a teologia sacramentária estava ainda sem elaborar. Por este motivo, a Comissão Teológica Internacional não quis definir sobre este tema.
"Em oposição à Escritura, alguns chefes da Igreja consentiram em um novo matrimônio à uma mulher cujo marido ainda vive. Permitiram apesar do que está escrito: "A mulher está ligada ao marido que ainda vive, e se considera adúltera à aquela mulher que se entrega à outro marido quando ainda viva o primeiro. Não obstante, estes pastores atuaram assim não por motivos vãos, posto que tal autorização foi permitida para evitar mares maiores, contrariamente à lei das Escrituras"."
Orígenes neste texto constata, segundo seu saber, um fato que se dava realmente nas comunidades de seu tempo. Por conseguinte, parece que nos primeiros séculos alguns pastores permitiram um segundo matrimônio à algumas mulheres inocentes e abandonadas por seus maridos.
Não obstante, sem negar esses fatos e apoiados na literalidade do texto, convêm adicionar duas qualificações:
Primeira: o Alexandrino disse expressamente que tal fato se opõe à Escritura. E é sabido a autoridade que Orígenes concede em todo momento à palavra revelada escrita. Por conseguinte, Orígenes no âmbito doutrinal condena essa prática dos pastores.
Segunda: ao mesmo tempo manifesta certa compreensão com essa prática, ao menos não a condena com a severidade que caberia esperar. Esse dado responde ao caráter conciliador que em todo momento manifesta esse eminente teólogo, ao modo como em ocasiões lamenta que os pastores reconciliaram alguns pecadores sem antes submetê-los à penitência pública, mas nesta ocasião se abstêm de condená-los.
Em todo caso, Orígenes não cede na doutrina, posto que ademais de afirmar expressamente que tal permissão "se opõe à Escritura", ao final do capítulo adiciona que a segunda união de tal mulher é legítima!, de modo que vive em irregularidade grave, pois "é adúltera, embora aparentemente esteja unida à um homem".
Esta posição de Orígenes, de defender a doutrina e não ser severo com as claudicações de alguns pastores, caberia referi-la à outros setores da Igreja nos primeiros séculos. Como escreve Munier:
"A Igreja antiga admitiu certas causas legítimas de separação... Mas em qualquer caso os Padres demandam a volta do adúltero e recomendam seriamente à parte inocente que não pode casar-se enquanto viva o outro cônjuge, não só por respeito à lei da indissolubilidade, ensinada na Sagrada Escritura, mas também por fidelidade ao ideal da monogamia... A lei da indissolubilidade foi entendida na Igreja antiga de maneira muito estrita. Os Padres aludem aos textos escriturísticos que a proclamam. Eles declaram que, ainda em caso de separação por infidelidade, o fato mesmo de voltar à se casar é um atentado à essa lei. No entanto, os atentados à lei da indissolubilidade são julgados e sancionados de modo diverso. Assim alguns chefes da Igreja, mais inclinados à indulgência, se abstêm de pronunciar as sanções canônicas... Isto não quer dizer que eles sacrifiquem os princípios aprovando expressamente os matrimônios em questão, mas que buscam o mal menor e tratam de evitar as situações desastrosas que se seguiriam."
Possivelmente esses casos de permissividade ante certas situações graves, que alguns pastores julgavam "mal menor", é o que levou a que certos sínodos particulares e algumas coleções canônicas acolhessem essas práxis. Deste modo, essas normas pastorais passaram às Coleções Canônicas. Mas isto nos remete ao segundo tema antes enunciado, ou seja, a tratar da separação e o divórcio na legislação particular da Igreja no primeiro milênio, que se expõe no Apartado III.
6. Doutrina dos Padres sobre a sacramentalidade do Matrimônio cristão
Neste tema se dividem os autores: alguns descobrem a afirmação da sacramentalidade desde cedo, desde o começo da literatura cristã. Outros, pelo contrário, apenas se encontram rastro algum para explicar a sacramentalidade do Matrimônio na Patrística.
Sem mediar na disputa e menos ainda pretender buscar uma linha média, as análises de ambas aportações fazem pensar que talvez as divergências se situam mais na metodologia que nas afirmações fundamentais. É evidente que a teologia sacramental é muita tardia. Inclusive a fixação em sete os Sacramentos se estabelece de modo definitivo no século XII. Por conseguinte, tratar de encontrar nos Padres, de maneira expressa e elaborada, a afirmação sacramental da união dos esposos cristãos é um intento vão e, se se faz, é seguro que se violentam os textos.
Não obstante, ao modo como desde os primeiros séculos os "sete Sacramentos" ocupam um lugar de privilégio, de maneira semelhante, o Matrimônio entre os batizados, se bem não menciona de modo expresso como "Sacramento" no sentido em que esse termo adquire na teologia posterior, se ocupa uma atenção especial e se louva de forma que obriga a concluir que os Padres encontram na união dos esposos cristãos uma presença qualificada de Jesus, o qual põe na pista de descobrir a raiz sacramental do Matrimônio como fonte de tal dignidade.
A história do Sacramento do Matrimônio na teologia escolástica é sobretudo a história de sua lenta admissão à dignidade de sinal verdadeiramente eficaz da graça.
Pois bem, parece que esse processo começa com o início da literatura cristã. Aqui estão os dados mais relevantes:
É freqüente que os escritos dos Padres relacionem o matrimônio dos convertidos com sua nova situação na Igreja. Aqui estão os testemunhos mais primitivos:
- SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA, em carta à outro hierarca, São Policarpo, recolhe o texto de Ef 5, 25 e prescreve:
"À respeito dos que se casam, esposos e esposas, convêm que celebrem seu enlace com conhecimento do Bispo, afim de que o casamento seja conforme o Senhor (katà Kyrion) e não só por desejo (kat' ipithymíam). Que tudo se faça para honra de Deus."
- CLEMENTE ALEXANDRINO introduz o termo "agiástai" (santificar) no Matrimônio que se realiza em Cristo:
"O Matrimônio é santificado quando se realiza conforme ao Logos (kata lógon), se o casal se submete à Deus e o vínculo se leva à cabo com coração sincero na seguridade da fé, que purificou a consciência culpável dos cristãos, os quais lavou seus corpos na água pura e comunicam na esperança."
Parece que em seu tempo, sem que possa se falar de um rito exclusivamente cristão, o sacerdote impunha as mãos sobre os esposos. Em todo caso, o Alexandrino destaca a santidade do Matrimônio cristão.
- TERTULIANO parece que argumenta sempre sobre o modelo de "Sacramento", entendido como "sinal": Adão e Eva são figuras de Cristo e da Igreja. Por sua vez, a imagem de Cristo-Igreja configura o Matrimônio entre os batizados. Cristo restaurou a pureza original do Matrimônio monogâmico, que se inicia no Paraíso.
Em um texto muito citado, parece que Tertuliano menciona a existência de um rito especial no Matrimônio cristão. E se não fosse assim, os termos que usa e os efeitos que produz situam o Matrimônio na órbita que a teologia medieval denomina "Sacramento". O escritor africano faz este elogio da união esponsal entre os batizados:
"Como descreverei a felicidade desse Matrimônio que a Igreja une, que a entrega confirma, que a benção sela, que os anjos proclamam, e ao que Deus Pai tem celebrado?... Porque verdadeiramente são dois em uma só carne, e onde há uma só carne deve haver um só espírito... Ao contemplar esses lares, Cristo se alegra, e envia-lhes Sua paz; onde estão dois ali está também Ele, e onde Ele está não pode haver nada mal."
- SÃO CIPRIANO, apesar de suas alusões ao Matrimônio são sempre muito de passagem, cita Ef 5, 31-32 e escreve que a relação Cristo-Igreja é a figura do Matrimônio cristão. Por isso anima à que os dois confessem sua fé no momento do martírio.
Caberia aportar mais textos patrísticos que manifestam a grandeza religiosa do Matrimônio cristão, mas, como dissemos mais acima, não é fácil demonstrar a sacralidade do Matrimônio nos testemunhos dos Padres pela razão de que a teologia sacramentária estava ainda sem elaborar. Por este motivo, a Comissão Teológica Internacional não quis definir sobre este tema.
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